Após percorremos pouco mais de 120 km dentro da reserva indígena Waimari Aproari, onde a BR 174 desaparece no meio de buracos e o asfalto já não existe faz tempo (a falta de manutenção neste trecho se explica em função dos indígenas, que muitas vezes não permitem obras ou não permitem que o homem branco pare por ali), chegamos à divisa dos estados do Amazonas e Roraima!
Cachoeira do Pium - área de Reserva Indígena Pium |
Parece que atravessamos um portal, pois aqui a floresta amazônica dá lugar ao cerrado, aqui chamado de LAVRADO. Esta área de savana (campos gerais do rio Branco) ocupa 44 mil km², onde os buritizeiros, muricizeiros, caimbés e paricanas, entre os outras espécies de gramíneas dominam - para quebrar um pouco a ideia de que a região amazônica é coberta por florestas densas tropicais úmidas!! O lavrado, mantendo as características do cerrado, com arbustos baixos e retorcidos e campo com gramíneas é usado como pasto e muito propício para plantações em larga escala de arroz, soja, sorgo,...
O Marco da Linha do Equador estava abandonado, por este motivo acabamos não acampando aqui pela falta de estrutura, preferindo ficar debaixo de umas árvores, próximo de uma plantação de palma... o óleo de palma, nesta região, é muito usado nas usinas termoelétricas como combustível.
O Estado de Roraima é super novo... foi criado na Constituinte de 1988 e sua localização é a mais setentrional do país. Sua capital, Boa Vista, está localizada no Hemisfério Norte (é a única capital brasileira neste hemisfério) e é a mais distante de Brasília. Com uma área pouco maior que a Bielorrússia (224000 km²), Roraima possui 46,4% de seu território como reserva indígena e mais 8,4% sob a responsabilidade do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) - o que equivale as áreas da Áustria e Suíça juntas, aproximadamente!
O estado possui apenas 15 municípios, dos quais Boa Vista é o mais populoso e o mais antigo.
Secando peixe, no sal e pimenta |
Em 1944 o recém criado Território Federal do Rio Branco (desmembrado do Amazonas) teve uma explosão de crescimento advindo do garimpo e em 1962 passou a chamar-se Território Federal de Roraima. O nome Roraima tem origem indígena e não existe consenso sobre seu significado. Sua etimologia tem 3 versões: "Monte Verde", "Mãe dos Ventos" e "Serra do Caju". Outros defendem que seria a junção de "roro" (verde) e "imã" (serra, monte). Há, ainda, outra versão que diz que "roro" (papagaio) e "imã" (pai, formador). Independente de seu significado, o roraimense prefere que se diga "Roráima", com o "a" aberto e agudo e não nasal.
Antes dos portugueses chegarem à região, ingleses e neerlandeses já ocupavam a área, vindos das Guianas (Guiana, Suriname e Guiana Francesa). A partir de 1725 os missionários Carmelitas iniciaram seu trabalho de evangelização dos indígenas e a consolidação da ocupação portuguesa se deu a partir de 1730, mesmo com as incursões espanholas na área. Em 1755 foi construído o Forte São Joaquim, na confluência dos rios Tacutu e Uraricoera (onde nasce o rio Branco), para auxiliar na proteção e manter a soberania de Portugal sobre estas terras. Deste Forte não há mais vestígios... a área onde ele estava hoje é uma fazenda.
A colonização da região só se efetivou com o garimpo intenso do ouro e diamantes, a partir de meados do séc. XX, e que trouxe levas migratórias vindas em sua grande maioria do Nordeste brasileiro (destaque para Maranhão e Ceará) e destruição da natureza... as atividades de mineração desordenadas são extremamente degradadoras.
Ao contrário do que muito se fala, com pouca propriedade, nesta região o garimpo representa o desenvolvimento e a economia do Estado. Ele movimenta milhões em maquinaria, combustível, mão de obra, alimentação e transporte, levando o desenvolvimento às vilas e gerando riqueza aos rincões do Estado. Sem medo de errar, podemos afirmar que sem o garimpo o Estado não teria o grau de desenvolvimento atual. O que carece, mesmo, é de regulamentações adequadas, para normalizar a atividade de forma a se desenvolver de maneira correta. Infelizmente hoje se observa o não-cumprimento das leis ambientais que são restritivas e proibitivas, não cumprindo políticas públicas.
Já existe o marco regulatório que normatiza, ainda de forma muito incipiente, a exploração do subsolo e solo no Brasil. Este necessita de adequações e estudos de maneira a cumprir sua função. Enquanto isto não acontecer, o garimpo ilegal, a retirada de minérios preciosos e nobres - a maior parte exportada de forma ilegal (fomentada por empresas estrangeiras) continuará! Todos perdem com isto! A título de curiosidade: estima-se que mensalmente são extraídos de 500 mil a 1 tonelada de ouro dentro dos garimpos de Roraima (ilegalmente).
O clima em Boa Vista é muito distinto do clima em Manaus... mesmo ambos pertencendo à Amazônia Legal e possuírem floresta tropical, a umidade em Manaus é tamanha que a roupa só seca se estiver pendurada no sol diretamente. Já em Boa Vista, mesmo na sombra tudo seca muito rápido! As chuvas são muito fortes e intensas, produzindo alagamentos e rápida subida dos igarapés (rios).
Observamos, conversando com locais, que tanto aqui, quanto no Acre e no Amazonas as estações, até então bem definidas de inverno (chuvas) e verão (seca), hoje já não são mais tão determinadas.
Caracaraí é a "Cidade-Porto" mais importante de Roraima; nasceu como local de embarque de gado para a capital amazonense, por este trecho do rio Branco ser navegável durante o ano todo. O rio Branco (não confundir com a capital do Acre), que nasce na confluência dos rios Tacutu e Uraricoera, próximo de Boa Vista, possui 584 km de extensão e é um dos afluentes do Rio Negro.
Rio Branco, em Caracaraí |
Boa Vista é a capital do Estado e possui 2/3 de toda a população do mesmo (437 mil habitantes). Planejada em sistema radial, com ruas amplas e de sentido duplo, ela foi projetada pelo engenheiro civil Darcy Aleixo Derenusson, entre os anos 1944 e 1946, tomando com inspiração Paris. Fundada inicialmente em 1830, no local onde havia uma fazenda de gado, nas margens do rio Branco, nos idos de 1890 a freguesia passou a ser vila sob a denominação de Boa Vista de Rio Branco. Hoje, com o imenso afluxo de imigrantes fugidos da Venezuela, a quantidade de habitantes na cidade quase dobrou e a língua espanhola se ouve nas ruas, comércios e por toda a parte. Estima-se que somente para Roraima, mais de 800 mil venezuelanos já imigraram.
Nossa permanência na cidade se deu em dois períodos distintos... quando chegamos à capital roraimense tínhamos por objetivo consertar um ruído no câmbio do Garça, que estava roncando já há alguns quilômetros! Através de um amigo viajante, Roni e sua esposa, Keila, fomos recebidos pelo seu irmão Rubem, o outro irmão Beto e o outro, Jean.
Na casa da sra. Evori, com Rubem e Dinar Caleffi |
Com Beto e Herlanda Caleffi |
Com Jean e Michelle Caleffi, no Monumento aos Pioneiros |
A família Caleffi é top e nos ajudou neste primeiro momento... achávamos que tudo estava resolvido, porém depois de uma semana (na qual o Marcos trabalhou sozinho no câmbio) o problema mostrou-se maior do que o imaginado: mesmo tendo trocado um rolamento e retentor, o câmbio continuava roncando!
Marcos mecânico trabalhando sozinho |
Não tendo mais condições de ficar por ali, arriscamos em seguir viagem, indo para a Serra do Tepequém, cujo acesso é feito pela BR174 e RR203, toda asfaltada, sentido Amajari.
Seria o Monte Roraima?? Nããããooooo... é a Serra do Tepequém |
Acampados ao lado da ponte do Igarapé Paiva |
Fomos conhecer a cachoeira do Paiva, o mirante do Paiva, as cachoeiras do Barata (em sequência) e tentamos chegar na cachoeira do Funil, mas pelo adiantado da hora acabamos desistindo (tínhamos de seguir a pé)!
No mirante do Paiva, Cachoeira do Paiva à esquerda |
Carne fresquinha na Vila do Paiva |
Cachoeira do Barata 1 |
Cachoeira do Barata 2 |
A Vila do Paiva é bonitinha e possui uma infraestrutura básica. Compramos pãozinho fresco do Zulmiro (que tem pousada e padaria) e também compramos coisinhas no mercado local (daquele tipo que tem de tudo!).
Igarapé do Paiva |
O platô da serra está a mais de 1000 msnm e o micro clima é bacana, ficando fresco para dormir à noite. Acredita-se que o nome Tepequém tenha origem indígena "Tupã + quem" = Deus do fogo ou fogo de Deus.
Deixamos o Tepequém pra trás e retornando até a BR174, seguimos rumo à Pacaraima, na divisa com a Venezuela, para abastecer (há poucos postos de combustível ao longo da estrada e muitas vilas só vendem combustível "no paralelo")! O último trecho da estrada (15 km) é de serra e horrível... levamos quase uma hora para vencer este trecho. Os moradores da divisa devem sofrer muito, pois o acesso ao finzinho do Brasil é inexistente! Chegamos à Pacaraima e nos deparamos com cenas tristes e inesquecíveis: gente perambulando com uma mochila nas costas, deixando seu país de origem, prostrado numa fila, com os filhos, esperando receber alimento e senha para ocupar um dos tantos "centros de refugiados" que vêm abrigando os venezuelanos! Perguntamos a um policial sobre posto de combustível e ele nos indicou o mais próximo, já na Venezuela, no que seria o início de Santa Elena. Fomos até lá, enchemos o tanque (pagando R$ 5,50 o litro do diesel... em Amajari, onde havia posto, estava R$ 8,80 o litro) e retornamos pelo mesmo caminho... Não queríamos pernoitar nesta região de divisa e conflitos! Pouco mais de 40 km adiante ficava o acesso ao Uiramutã, pela BR433 - Estrada Surumu! Percorremos uns 8km, aproximadamente e encontramos um acesso lateral onde acampamos já anoitecendo!
Tapera no Surumu |
Na manhã seguinte nos dirigimos até a vila do Surumu - área indígena pertencente à Raposa e Serra do Sol, onde preparamos nosso café debaixo de uma tapera. Marcos deitou-se debaixo do carro e descobriu aquilo que já suspeitávamos: além do ronco no câmbio, agora tinha vazamento... alguns indígenas vieram pedir "troco pra R$ 50,00" e como não tínhamos nada, se afastaram! Decidimos abortar nossa ida ao Uiramutã (neste momento)... não tinha como percorrer mais 90 km de estrada ruim e subida de serra desta forma! Decidido isto, retornamos à Boa Vista, parando 25 km antes da cidade no Balneário Murupu, onde passamos o fim de semana (dormimos duas noites, de sábado e domingo), pois só conseguiríamos encontrar uma oficina mecânica e especialista em câmbio a partir de segunda-feira. Para ajudar, era domingo de eleição: primeiro turno!!! Estavam todos em polvorosa e o melhor era ficar distante da cidade, organizando e replanejando nossas ideias!
Balneário Murupu |
Igarapé Murupu |
Negociamos com o José Carlos, proprietário do balneário (gaúcho da fronteira com SC), e combinamos o valor de R$ 50,00 para os dois pernoites!! O lugar tem boa infraestrutura, com banheiros, restaurante, área sombreada e o igarapé é top!!! O único chato são os piuns, borrachudos, maruins e afins... mesmo com repelente, os bichinhos incomodam! O negócio era ficar dentro da água!
Marizete, sr.Vicente, Juliana, Eduardo, Gleydner, Sabrina com Cadu no colo e Thalita |
No domingo estávamos dentro da água quando conhecemos uma galera top - a família Gleydner, Juliana e Thalita; sua mãe, Marizete; o pai da Juliana, sr. Vicente e mais outro amigo, Eduardo, com sua esposa Sabrina e o bebê, Cadu! Eles não só nos convidaram para almoçar com eles, como ainda nos ofereceram ajuda com o problema do carro, pois o Gleydner (que é mecânico de profissão, mas atualmente atua em outras áreas) possui local para executar a manutenção do Garça, se necessário!
Com Edmilson e Luciana, às margens do rio Mucajaí |
Família reunida: Juares (SC), Nenen, Ana Luíza, Luciana, d. Helena e Edmilson e Diego (SC) |
O mundo possui muitas pessoas boas... diria que há mais gente boa que ruim rsrsrsr Retornamos à Boa Vista e desta vez fomos recebidos pela família de Luciana e Nenen, as filhas Ana e Gabi... de quebra ainda conhecemos o pai da Lu, Edmilson (Negão), e sua esposa Helena, e com direito a 4 cachorrinhos: Lulu (Shih-tzu), Orion ou Podrão (mistura de Lhasa apso com Fox terrier), Gegê (Gertrudes, no melhor tipo TLCP - tomba lata com pedigree) e sua filha, Loura (também TLCP).
Lulu |
Orion, vulgo Podrão |
Loura |
Gegê (Gertrudes) |
Nossa permanência aqui foi se estendendo... a falta de peças que tinham de vir do Sul do Brasil, a falta de comprometimento do "especialista" que não deu conta de montar o câmbio - Marcos montou-o sozinho (em 5 dias), com auxílio de tutoriais e ajuda dos amigos do grupo Sportage Brasil, a descoberta de outro problema da caixa de redução, acabaram por nos tornar macuxis*!!!
*Macuxi: população indígena localizada na região de Roraima. Eles são divididos em diversas tribos, considerados "tapuias" (não tupis). Carinhosamente, cidadãos roraimenses são chamados "macuxis"!
Aproveitamos os mais de 2 meses de permanência por aqui para conhecermos bem a região, aprofundarmos nosso conhecimento na cultura e culinária locais, além de estreitarmos nossos laços afetivos com nossa nova família roraimense!!!
O ponto mais setentrional do país, diferentemente do que se acredita, não é o Oiapoque e sim, o Monte Caburaí, localizado em Roraima, com 1465 msnm, situado no município de Uiramutã, próximo da divisa com a Guiana. O Oiapoque é o ponto litorâneo mais setentrional do Brasil (segundo as demarcações territoriais geográficas, o Monte Caburaí está a 70 km mais ao norte do Oiapoque).
O Monte Roraima, o mais alto do Estado, localizado na Serra de Pacaraima, divisa com a Venezuela e Guiana, possui 2772 msnm. Os passeios para lá se tornaram muito caros... isto acaba sendo um impedimento para que mais pessoas atinjam o seu cume.
De pernas pro ar... curtindo o fim de tarde no Caracaranã |
O Lago Caracaranã, localizado dentro do município de Normandia (quase divisa com a Guiana, a leste), distante 180 km da capital, possui areias brancas e 5,8 km de perímetro. Estando dentro de área de reserva indígena Raposa e Serra do Sol, depende da autorização do tuxaua* (cacique) para permitir sua visitação, situação semelhante às cachoeiras do Uiramutã e outras belezas naturais do Estado. O ingresso (quando permitido) é de R$ 15,00 por pessoa para o day use e negociamos o pernoite, que era de R$ 80,00, para R$ 60,00 (já com nosso ingresso incluso) com o Kleber, indígena responsável pela portaria (Kleber - +55 98 9425 - 3096)
Pequenas indígenas da reserva brincando no lago |
O *tuxaua é uma figura que representa a sabedoria da aldeia, representa a aldeia e sua interação com outras tribos. Do tupi, significa "aquele que manda". Tradicionalmente o poder passa de pai para filho, mas percebemos que em muitas tribos existem eleições e o/a tuxaua é eleito (a) a cada dois anos. Ele(a) é a autoridade máxima na reserva... aqui as leis do homem branco não tem vez, nem voz. Qualquer interferência dentro da área indígena tem de ter a autorização do tuxaua, e apenas a Polícia Federal com um agente da Funai poderão atuar ou interferir em questões locais. Para mais informações, sugiro a leitura das responsabilidades do tuxaua, que ganha salário e tem direito à aposentadoria (indígenas se aposentam - aposentadoria rural de atividade de no mínimo 10 anos atuando, comprovada pelo agente da Funai), entre outros benefícios. Eles também têm Sindicato que negocia os reajustes salariais e valor de vale refeição! É muito interessante, vale a pena a leitura... https://cargos.com.br/salario/tuxaua/
Estranhos cupinzeiros da região |
Normandia tem o nome em homenagem ao célebre morador da cidade, originário de Paris (França), Maurice Marcel Habert, que cumpriu pena de 10 anos na Guiana Francesa, na prisão Saint-Laurent-du-Maroni... Ele foi um dos presos que fugiu do cárcere junto com o famoso Papillon (aquele do filme, que na verdade não fugiu sozinho). Maurice instalou-se primeiramente em Georgetown (capital da Guiana) e depois mudou-se para Lethem (já na divisa com o Brasil). Apenas por volta de 1946/1948 passou a morar no Brasil, na região onde hoje fica a cidade com o nome da região que batizou. A história verdadeira de Papillon é envolta em muito mistério, mas supostamente ele viveu na região do Surumu (onde estivemos) após a fuga cinematográfica da prisão, e foi enterrado lá, numa cova trocada! Mas esta já é outra história!
Aves migratórias e outras, se alimentando nas vastas áreas inundadas da região |
Os cupinzeiros parecem o chapéu saído do filme "Harry Potter" |
A linda Jade, pitbull de Robert |
Entrada da fazenda Guanabara junto com Robert: local onde ocorreram os conflitos com morte de indígenas e fazendeiros |
Cemitério da cidade de Normandia. Ao fundo, morro onde ocorre a procissão do Círio de Nazaré |
Panelas de Barro da Raposa - peça produzida seguindo raízes da cultura macuxi, desenvolvida na comunidade Raposa I, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol |
Nossa permanência em terras brasileiras estava chegando ao fim. Após um período em que exploramos a região amazônica dos estados do Acre, Rondônia, Amazonas e Roraima, agora era hora de explorarmos uma região pouco conhecida dos brasileiros. Decidimos passar o Ano Novo (2022/2023) já em terras Guianenses.
Mas esta já é outra história...